Momento difícil
Éramos um grupo que marcava um pouco da vida de uma cidade angolana, Sá da Bandeira, assim era chamada naquele tempo, quando a bandeira portuguesa ondulava ao sabor do vento do planalto da Huíla nos mastros dos edifícios do Estado, entre eles o do RI 22.
Jovens de 21/22 anos, farda de militar envergada com orgulho e com vaidade, especialmente quando trajávamos o camuflado.
Tu, nem por isso. Preferias a farda de passeio a que adicionaste o chapéu de pala, que quase todos nós recusavamos, por termos convencionado que dava um «ar de chico».
Pouco tempo foi necessário para percebermos que tu pouco ou nada te importavas com esses preconceitos e piadinhas. Usavas por uma questão de imagem diferente. Nada mais. Personalidade muito vincada, eras superior às piadas.
No quinto e último andar do edifício, o apartamento que habitávamos, muitas vezes permanecíamos à varanda, falando dos mais diversos temas que chegavam ao sabor das «cerejas», sem deixar passar o conteúdo do tema mais importante que, de vez em quando, lá debaixo, dos passeios, olhava de soslaio, torcendo o pescoço para cima, para o grupo.
De imediato saía o debate sobre qual de nós teria sido o alvo do olhar feminino, retomando, pouco depois, o tema em debate, até que um novo olhar torcido de cobiça, lá embaixo, o interrompesse.
Bons tempos passámos naquela cidade e naquele ambiente.
A juventude que transportávamos dava para tudo. A pressão da vida militar, pelo futuro ainda mais incerto, fazía-nos viver em alta rotação. Não se podia deixar de viver qualquer minuto, pois podia ser o último antes da mobilização para uma zona de risco, onde poderíamos perder irremediavelmente a juventude ou até a vida.
Recordo os passeios no Picadeiro acima e abaixo, sempre a «morder a febra» que se avistasse no horizonte, da forma menos platónica que os tempos permitiam - e eles eram duros a esse respeito, nada como hoje - e que eram mais um momento para um pensamento à namorada deixada a umas centenas de quilómetros. Ou as farras no recinto do Benfica. Ou os passeios pela Senhora do Monte.
E as farras no apartamento, que também iam acontecendo, ao som de gira-discos, com muitos singles e alguns long-play, luzes psicadélicas inventadas a partir de lampadas incandescentes forradas de papel celofane vermelho, ligadas a um arrancador de lampadas fluorescentes, encaixadas em caveiras envernizadas de impalas que decoravam a parede. E as despedidas de amigos a quem lhes tinha saído na sorte ir para zonas de combate, palmilhando a cidade para cima e para baixo, parando em bar sim, bar sim, também num restaurante para comer algo que permitisse aguentar a longa noite, até pararmos no Bar Nocturno Chela, onde uma vez te vi a «sair de gatas» com o Almeida, poucos minutos antes de ele se encaminhar para o Norte.
Foi nesse tempo e espaço que se cimentou a nossa amizade, mantida ao longo destes trinta e tal anos em que a nova vida, para onde nos atiraram, pouco espaço deu para a continuação do nosso convívio como era desejável e desejado, mas que, de qualquer forma, tinha agenda marcada para o tempo em que tivessemos mais tempo para acabarmos os anos que nos sobrassem.
Mas… há nove semanas, pregaste-nos um susto valente e mantiveste-nos em suspenso sofrimento, à espera que saísses desse coma traiçoeiro para onde te lançou a pérfida doença inesperada, passando pela maior prova que te tinha sido lançada até então.
A esperança é sempre a última a morrer.
E todos estavamos irmanados na esperança de te podermos voltar a ver no grupo, nos grupos, entre todos.
Hoje, embora continues na nossa presença, partiste, resolveste que era chegado o teu tempo de folga deste mundo que anda maluco. Leva-nos os amigos. Levou-me um grande e sincero amigo, de amizade honesta.
Foste o primeiro dos jovens de Sá da Bandeira do 5º andar a fazê-lo.
Um dia, encontrar-nos-emos, onde quer que seja. Vamos continuar as conversas interrompidas. Vamos ficar a beber umas cervejas, apreciando a paisagem.
Até lá, fica o meu grande abraço de amizade e já de saudade.
Até um dia, até sempre, Vitor.
P.S.:
Jovens de 21/22 anos, farda de militar envergada com orgulho e com vaidade, especialmente quando trajávamos o camuflado.
Tu, nem por isso. Preferias a farda de passeio a que adicionaste o chapéu de pala, que quase todos nós recusavamos, por termos convencionado que dava um «ar de chico».
Pouco tempo foi necessário para percebermos que tu pouco ou nada te importavas com esses preconceitos e piadinhas. Usavas por uma questão de imagem diferente. Nada mais. Personalidade muito vincada, eras superior às piadas.
No quinto e último andar do edifício, o apartamento que habitávamos, muitas vezes permanecíamos à varanda, falando dos mais diversos temas que chegavam ao sabor das «cerejas», sem deixar passar o conteúdo do tema mais importante que, de vez em quando, lá debaixo, dos passeios, olhava de soslaio, torcendo o pescoço para cima, para o grupo.
De imediato saía o debate sobre qual de nós teria sido o alvo do olhar feminino, retomando, pouco depois, o tema em debate, até que um novo olhar torcido de cobiça, lá embaixo, o interrompesse.
Bons tempos passámos naquela cidade e naquele ambiente.
A juventude que transportávamos dava para tudo. A pressão da vida militar, pelo futuro ainda mais incerto, fazía-nos viver em alta rotação. Não se podia deixar de viver qualquer minuto, pois podia ser o último antes da mobilização para uma zona de risco, onde poderíamos perder irremediavelmente a juventude ou até a vida.
Recordo os passeios no Picadeiro acima e abaixo, sempre a «morder a febra» que se avistasse no horizonte, da forma menos platónica que os tempos permitiam - e eles eram duros a esse respeito, nada como hoje - e que eram mais um momento para um pensamento à namorada deixada a umas centenas de quilómetros. Ou as farras no recinto do Benfica. Ou os passeios pela Senhora do Monte.
E as farras no apartamento, que também iam acontecendo, ao som de gira-discos, com muitos singles e alguns long-play, luzes psicadélicas inventadas a partir de lampadas incandescentes forradas de papel celofane vermelho, ligadas a um arrancador de lampadas fluorescentes, encaixadas em caveiras envernizadas de impalas que decoravam a parede. E as despedidas de amigos a quem lhes tinha saído na sorte ir para zonas de combate, palmilhando a cidade para cima e para baixo, parando em bar sim, bar sim, também num restaurante para comer algo que permitisse aguentar a longa noite, até pararmos no Bar Nocturno Chela, onde uma vez te vi a «sair de gatas» com o Almeida, poucos minutos antes de ele se encaminhar para o Norte.
Foi nesse tempo e espaço que se cimentou a nossa amizade, mantida ao longo destes trinta e tal anos em que a nova vida, para onde nos atiraram, pouco espaço deu para a continuação do nosso convívio como era desejável e desejado, mas que, de qualquer forma, tinha agenda marcada para o tempo em que tivessemos mais tempo para acabarmos os anos que nos sobrassem.
Mas… há nove semanas, pregaste-nos um susto valente e mantiveste-nos em suspenso sofrimento, à espera que saísses desse coma traiçoeiro para onde te lançou a pérfida doença inesperada, passando pela maior prova que te tinha sido lançada até então.
A esperança é sempre a última a morrer.
E todos estavamos irmanados na esperança de te podermos voltar a ver no grupo, nos grupos, entre todos.
Hoje, embora continues na nossa presença, partiste, resolveste que era chegado o teu tempo de folga deste mundo que anda maluco. Leva-nos os amigos. Levou-me um grande e sincero amigo, de amizade honesta.
Foste o primeiro dos jovens de Sá da Bandeira do 5º andar a fazê-lo.
Um dia, encontrar-nos-emos, onde quer que seja. Vamos continuar as conversas interrompidas. Vamos ficar a beber umas cervejas, apreciando a paisagem.
Até lá, fica o meu grande abraço de amizade e já de saudade.
Até um dia, até sempre, Vitor.
P.S.:
Nota de hoje, 30.11.2007 - 18:43 Brx.
Quando postei, não esperava receber comentários.
Foi um post deixado em momento de dor e muito pessoal. Talvez não o devesse ter deixado no blogue (?!).
Embora pela natureza do tema me parecesse que não era necessário, seleccionei a função de retirar a possibilidade de enviarem comentários ao post.
Por algum motivo que estará ligado às minhas capacidades técnico-informáticas, ou talvez pelo estado emocional em que me encontr/ava/o, a função não ficou activa e só hoje dei por isso, ao verificar que tinha havido comentários ao mesmo.
Como desde o princípio era meu propósito, não os vou publicar, embora os receba e leia.
As minhas desculpas pelo facto, os meus agradecimentos pelos comentários que se caracterizaram pela sintonia com o momento.
Quando postei, não esperava receber comentários.
Foi um post deixado em momento de dor e muito pessoal. Talvez não o devesse ter deixado no blogue (?!).
Embora pela natureza do tema me parecesse que não era necessário, seleccionei a função de retirar a possibilidade de enviarem comentários ao post.
Por algum motivo que estará ligado às minhas capacidades técnico-informáticas, ou talvez pelo estado emocional em que me encontr/ava/o, a função não ficou activa e só hoje dei por isso, ao verificar que tinha havido comentários ao mesmo.
Como desde o princípio era meu propósito, não os vou publicar, embora os receba e leia.
As minhas desculpas pelo facto, os meus agradecimentos pelos comentários que se caracterizaram pela sintonia com o momento.
2 comentários:
também lá estive...no "nosso" RI 22...vindo da EAMA...depois da recruta e especialidade...Sapador...fui eu e o Virgilio Carvalho....lá fomos para a CCS...secretaria...eu saí em Fevereiro de 2005 e o Virgilio ficou...
Um kandadu
Carlos Silva
Carlos Silva,
Obrigado pelo teu comentário.
Os laços que se cimentam no "tempo que anda fardado", especialmente se ele tiver um ambiente de guerra, são para toda a vida.
O simples facto de termos locais comuns por onde passámos esses tempos, faz-nos reviver as amizades de então.
Pelo teu "nosso" - entre aspas, pensei que pudesses estar a referir-te ao mesmo tempo em que por lá andei por esses locais: EAMA e RI 22.
Depois, ao afirmares que saíste em 2005... fiquei baralhado. Completamente.
Foi erro da tua parte? É que eu pensava que em 2005 a EAMA já não funcionava há muito, por estar destruída. Tanto quanto sei, o RI 22 tem agora uma função de formação militar, não sei bem se em substituição da EAMA.
Enfim, gostava de aprofundar. Se não te importas, poderias dizer-me, quer através do campo comentário a este post, quer, de preferência, através de envio de mensagem pelo endereço de e-mail que está indicado no Blogue.
Kandandu para ti também.
Enviar um comentário